DEPOIMENTOS
Depoimento de Roberto Cavalcanti de Albuquerque
Conheci Marcos no Colégio Nóbrega, tradicional casa de ensino jesuíta do Recife, somente da atual Universidade Católica de Pernambuco. Vivíamos a primeira metade dos anos de 1950. Ambos cursávamos o segundo grau (o Clássico, que enfatizava as Letras e as Humanidades, em oposição ao Científico, capitaneando pela Matemática e Ciências). Eu já avançava pelo segundo dos três anos do curso, fizera o ginasial do Colégio Marista do Recife. Recém-chegado de Limoeiro, onde cursara o ginasial. Marcos viera fazer o Clássico no Recife (seu pai, Antônio Vilaça, fora um dos professores do filho no Ginásio de Limoeiro, afamado em toda aquela região, o Agreste norte de Pernambuco). Aproximamo-nos rapidamente. Havia raízes comuns. Eu vivera toda a infância no Agreste, em Vertentes, sopé da Serra de Taquatiringa. Nossos pais eram políticos do interior. Antônio Vilaça era uma espécie de primeiro-ministro do coronel Chico Heráclito, com poderes inclusive para moderar os ímpetos do famosos líder regional, assim conciliando muitos antagonismos. Meu pai, Emídio Cavalcanti, médico e deputado estadual, tinha a votação concentrada no Agreste, sua terra. Ambos lideravam, Vilaça em Limoeiro, Emídio em Vertentes, cooperativas de crédito agrícola. Conheciam-se ligeiramente. A amizade dos filhos o aproximou. As duas famílias passaram a frequentar-se. E a amizade entre Marcos e mim, nascida no colégio, prosseguiu na faculdade de Direito e se firmou inteira e continua pela vida afora: No Recife, em Brasília, no Rio de Janeiro... Lembro de algumas viagens de automóvel que fizemos, o professor Vilaça, sua mulher Evalda (Marcos tem muito dela), Marcos e eu. Era hábito da família sair de manhã pelas estradas da região: para Nazaré da Mata, terra de Evalda; para Caruaru, Gravatá ou Bezerros; para Lajedo (onde o professor Vilaça tinha parentes). Ou simplesmente para a pequena granja dos Vilaça às margens do Capibaribe, próxima a Limoeiro, com o seu laranjal. Eram passeios descontraídos. Conversávamos muito, em convívio amigo, desinteressado, esquecidos do tempo, que passava mais rápido que a paisagem mutante de um agreste ora quase sertão, ora quase mata. Acompanhei passo a passo o namoro, noivado e casamento de Marcos e Maria do Carmo – desde os tempos em que ela, estudante das Damas Cristãs do Recife, a saia azul pregueada, o riso meio contido, os gestos francos, encantava a todos pela beleza de menina-moça. Os dois se davam muito bem. Mas nem sempre pensavam o mesmo das pessoas, lugares, situações. Ambos afirmativos, ela mais incisiva, ele mais maleável. O casamento, anos depois, foi uma grande festa, admirada e lembrada pelo Recife todo.
Nesse início dos anos de 1960, ainda estudantes de Direito, o livro seria Coronel, coronéis já estava sendo gestado. Foi no carnaval de 1962, Marcos, Maria do Carmo, eu e muitos outros amigos não dispensávamos o “corso”. Vínhamos em jipe aberto pela Rua da Concórdia, centro do Recife, o caminho obrigatório das noites de folia que antecediam o Carnaval. Chegávamos à Praça Joaquim Nabuco – em frente ao antigo “Cinema Moderno” e ao monumento erguido em homenagem a Nabuco – quando, de conversa entre Marcos e mim, surgiu, num estalo, o título do livro: Coronel, coronéis, por que não? Quase tão breves como A Bíblia, Os Sertões, Os Maias, comentamos. Mais misterioso, talvez. O corso, o carnaval continuou pela Rua do Sol. O assunto somente seria retomado meses depois, Coronel, coronéis foi realmente um trabalho a duas mãos (com um grande incentivo de Maria do Carmo e as sempre amigas cobranças de Evalda e professor Vilaça). Marcos já tinha um livro publicado, ensaio dos bons. Em torno da Sociologia do caminhão. Ambos frequentávamos a casa de Gilberto Freyre, uma grande influência. E também o Instituto Joaquim Nabuco, iniciativa de Gilberto, naqueles anos, dirigido por Mauro Mota (um grupo de jovens intelectuais, entre eles Roberto Motta e Arthur Carvalho, formávamos a “jovem guarda” do Instituto), Marcos já colhera farto material sobre os quatro coronéis, selecionados pela importância, e pelo fato de estarem vivos). Fizemos algumas viagens pelo interior para visitar os coronéis, entrevistá-los, sopesá-los, conhecer suas ideias, o mundo que eles comandavam, a família, as fazendas. Viagem para Salgueiro (coronel Veremundo Soares) e Serrita (coronel Chico Romão), no alto do Sertão de Pernambuco. Viagem para Bom Conselho (terra de Zé Abílio). De Limoeiro, nem falar. Vilaça pai, Vilaça filho tinham acesso a tudo, conheciam toda a história. Estivemos com Chico Heráclio por mera formalidade: em sua casa de Limoeiro, já avançada a idade. Pudemos conversar com franqueza e destemor com todos os quatro coronéis retratados. Usamos máquina fotográfica e gravador, quando possível (o impressionante diálogo entre Chico Romão e a viúva de Mané Darico, prova da submissão dela e do poderio dele para resolver disputa de terras como um justiceiro incontestado, foi gravado em Serrita). Coube ao Marcos redigir os quatro perfis dos “coronéis”. Com mais pendores da abstração (ou a generalização), tratei do “coronel”: o modelo, os tipos, os traços peculiares, o mundo que eles comandaram e a “modernidade” que afinal os derrotou. Trata-se de um livro – reportagem. Retrata, analisa, opina, critica, posiciona-se. Tem demonstrado ter alguma permanência. O fenômeno básico examinado, o do poder e seu exercício, têm validade universal. Durará enquanto durar o homem e a sociedade. Daí o interesse despertado por Coronel, coronéis no exterior.
Marcos é uma personalidade que se revela em múltiplas dimensões. Sua vida e obra confluem em um mesmo estuário. A obra é a do escritor literário, mas também a do grande empreendedor da cultura, revelado em Brasília, quando exerceu a Secretaria da Cultura do MEC e comandou o Iphan; consumado mais recentemente na excepcional e inovadora gestão como presidente da ABL. A vida é várias vidas entrelaçadas em harmonia. A da família menor, nuclear, construída por ele e Maria do Carmo com energia e afeto, em alguns momentos, dolorosamente sofrida, mas também vivente de muitas merecidas alegrias. É a da família maior, na qual ele e Maria do Carmo incluem os amigos mais chegados, os dois sendo fidelíssimos nas amizades. Há, porém outros Marcos em Marcos: há nele um prazer no conviver e participar: da cátedra que exerceu, no governo; no TCU que presidiu; na Academia. Há nele uma inquietação interior que desconhece distâncias e o impede a palmilhar curioso e atento o mundo todo – fruindo em particular o seu Portugal, Paris e Roma. E há nele um nunca esquecer o seu Brasil, o Recife de Pernambuco, o Rio de todos nós.
Roberto Cavalcanti de Albuquerque